NÚCLEO DE ANTIGOS-ALUNOS DO COLÉGIO SANTO INÁCIO
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O CAMINHO DO PEREGRINO
O CAMINHO DE INÁCIO
QUEM É ESTE HOMEM
P.R.Paiva SJ

1. Acham que nasci no ano de 1491. Nem eu mesmo sei, pois não havia registro dessas coisas naquele tempo. Festa de aniversário? Nosso costume era, e ainda é, celebrar o "onomástico", isto é, a festa do santo que nos deu o nome. Eu me chamava Iñigo de Loyola. Mais tarde passei a assinar-me Inácio de Loyola. Hoje sou conhecido como Santo Inácio de Loyola. Mas nem sempre fui santo...

Nasci no país basco. Lugar de montanhas, mar bravo, floresta, fronteira das terras de Espanha e da França. Nós, bascos, somos diferentes. Temos até campeonato de levantamento de pedras, em três categorias: esféricas, cilíndricas e cúbicas.

2. Minha língua materna não foi o castelhano, mas o basco. É uma língua única. Até hoje, no ano 2000, não descobriram de que outros falares ela é aparentada. Os fofoqueiros costumam dizer que o demônio não nos tenta porque não conseguir aprender a língua... Claro que isto é bobagem, e sou testemunha disso, pois fui tentado e caí em tentação, como vou contar...

3. Minha casa era uma pequena fortaleza, pois minha família fazia parte da nobreza local, o restrito grupo dos "parentes maiores". Na porta principal tínhamos esculpido na pedra nosso brasão: dois lobos com as patas na panela, "ola", dos camponeses ("lobos y ola" = "Loyola"). Vendo esta imagem esculpida na pedra todos sabiam com quem estavam lidando: com gente brava!

4. Como não era o mais velho, e sim D. Beltrão, nada herdaria, a não ser o nome limpo de minha família, boas maneiras e o manejo de minha espada... Por isso, pelo ano de 1506, peguei o caminho da fortaleza de Arévolo, pondo-me a serviço de Juan Velazquez de Cuellar, ministro do rei Fernando, o Católico - aquele casado com Isabel, a rainha que enviou Colombo na sua grande aventura marítima, quando descobriu o Novo Mundo, a América.

5. Gostava de espadas e arcabuzes, as espingardas do tempo, e treinei bastante no uso destas armas e na arte de montaria. Gostava de dançar, de namorar. Queria fazer alguma coisa grande que me elevasse aos olhos da corte e me pusesse na altura de uma bela de alta linhagem, mais elevada até do que as marquesas e duquesas. Confesso: era bastante vaidoso, ansioso por honras. Cheguei a cometer um delito grave e fui processado (1515), mas, como "quem tem padrinho não morre pagão", as coisas se arrumaram...

"Rei morto, rei posto". Mudando o rei, mudavam os tempos e os ministros. D. Velasquez, ministro da Rainha Isabel, caiu em desgraça e em relativa pobreza. Deu-me um cavalo e uma carta de recomendação para me ajudar a recomeçar a vida. Passei, então, serviço do Vice-rei de Navarra, o Duque de Nájera, D. Antônio Manrique. As voltas da vida me faziam regressar bem perto de minha terra natal, junto a fronteira da Espanha com a França, zona de atritos e guerras. Corria o ano de 1517.

6. No ano de 1550, combati, como voluntário do Vice-rei, na reconquista de Nájera, mas não quis participar da partilha do saque, que era a paga dos soldados de então. Mas participei de missão de paz com os bascos revoltados. Conseguimos um acordo de paz em 12 de abril de 1521. Logo, reuni algumas forças auxiliares e fui em socorro da capital de Navarra, Pamplona, ameaçada pelos invasores franceses. Impedi a rendição da cidade por um tempo. Mas uma bala de canhão me partiu a perna direita e feriu a esquerda. Caímos eu e a cidade em mãos dos franceses. Lembro-me bem! Foi no dia 20 de maio de 1521.

7. Os franceses me fizeram um primeiro curativo e enviaram ao castelo de minha família, Loyola ... Afinal, éramos adversários mas, em tempos de paz, os casamentos nos faziam aparentados de um e de outro lado dos Montes Pirineus, por onde passava a linha de fronteira. Eu não sabia, mas meu caminho estava para tomar um rumo inesperado.

8. Passei mal. Recebi os últimos sacramentos no dia 24 de junho. Eu não era muito cristão, mas me achava, apesar de tudo, um fiel católico. Tinha fé. No dia 28 de junho, no meio da noite, pareceu-me ter uma visão. Por intercessão de São Pedro o perigo foi superado. Vocês imaginem que eu tinha mandado quebrar de novo a perna, colocar de novo talas e espichar com pesos, pois o osso ficara mal soldado, formando um calombo que eu não quis tolerar, pois como iria usar botas de cano alto e, pior ainda, participar dos bailes e elegâncias da nobreza? Lembrem-se: não havia nem anestesia, nem antibióticos, nem anti-inflamatórios, nem assepsia... Se não fosse a bondade de Deus, eu hoje não tinha feito o caminho que fiz, nem estaria falando com vocês.

9. Convalescentes, quis ler meus romances prediletos de aventuras, livros de cavalaria. Livros eram artigo de luxo, e, em casa, minha boa cunhada só possuía a "Vida de Cristo" de Ludolfo da Saxônia e uma coletânea de vidas de santos. Com não tem cão caça com gato, comecei a lê-los, meio sem gosto. Preferia ficar pensando em como iria voltar à corte logo que pudesse e o que eu iria fazer e acontecer para conseguir ser notado e amado pela princesa dos meus sonhos.

10. Mas, lendo a vida de Cristo e dos santos, às vezes, graças a Deus, me surpreendia pensando: "E se eu realizasse isto que fez São Francisco? E aquilo que fez São Domingos? São Francisco fez isto? Pois vou fazer também!"

11. Notei, com o tempo, esta diferença: enquanto pensava na corte, tinha muito prazer. Mas, cansando, ficava seco e descontente. Pelo contrário, quando pensava em peregrinar descalço a Jerusalém, em me tornar vegetariano, em imitar os rigores que via nos santos, não só sentia consolação enquanto estes pensamentos duravam, mas, ainda depois, permanecia alegre e contente. Comecei a admirar-me desta diferença. Pouco a pouco, entrei no caminho do discernimento dos espíritos que me moviam: um do demônio e outro de Deus. Esta foi a primeira reflexão que tive sobre as coisas de Deus. Mais tarde, exercitando-me nos mistérios da vida de Nosso Senhor, Jesus Cristo, comecei daqui a tomar luz para escrever as regras para ajudar o discernimento espiritual, isto é, para sentir e conhecer a vontade de Deus em todas as coisas.

12. Este foi o momento de minha conversão. Hoje, alguns diriam que passei de um catolicismo cultural e sociológico, uma religião de costume, para uma vivência mais íntima e consciente. Comecei a pensar seriamente na minha vida passada, com desejos de mudanças e de uma nova vida. Sentia-me com ânimo generoso e cheio de um novo afeto por Deus. Fui confirmado na força destes desejos uma noite, quando, acordado, vi claramente uma imagem de Nossa Senhora com o santo Menino Jesus. Recebi uma consolação muita excessiva. Veio-me nojo de minha vida passada, em particular dos pecados da carne. As fantasias sensuais que eu tinha impressas em mim se desvaneceram. Foi uma graça de Deus, que perdurou pelo resto de minha vida na terra.

Meu irmão e os outros da família notaram que eu estava mudado. Comecei a ter gosto em contemplar o céu e as estrelas. Passei a anotar num grosso caderno de trezentas folhas as palavras de Cristo e as de Nossa Senhora com tintas de cores diferentes, caprichando na caligrafia, pois eu era tinha aprendido a escrever com boa letra. Decidi ir a Jerusalém. Mas, e depois? Qual seria o caminho? Um mosteiro? Meu irmão começou a pressentir alguma coisa e me pressionou. Mas, fui adiante... Vocês até podem duvidar do que vi e vivi, mas eu não posso, pois a semente virou árvore e a árvore está dando fruto até hoje... Você sabe: pelo fruto se conhece a árvore.

13. Resolvi meus assuntos com o Vice-rei. O dinheiro que me pagou, distribuí. Ainda montado e vestido como fidalgo, com minha espada, fui em peregrinação para Montserrat. No caminho quase assassinei um mouro. Íamos conversando. Ele falou bem de Nossa Senhora, mas disse que não podia aceitar que ela continuasse virgem dando à luz o Menino. Pensava de devia matá-lo ou não. Afinal deixei a mula decidir por mim: se ela fosse pela estrada da vila, eu seguiria o mouro e lhe daria umas punhaladas, se não... Graças a Deus a mula foi mais sábia, pegou o outro caminho, e eu não fiquei com um assassinato na consciência!

14. No caminho, dei minhas roupas a um pobre e comecei a usar outras, as mais rústicas que pude encontrar. Comprei um bordão e uma cabacinha. No altar da Igreja de Nossa Senhora de Montserrat deixei a espada, depois de uma noite em vigília de oração.

15. Perto de Montserrat, nas vizinhanças de Manresa, abriguei-me numa cova. Queria ter tempo e tranqüilidade para anotar alguns pontos num caderno que tinha muito bem protegido e que me consolava muito. Este caderno veio a ser o livrinho dos "Exercícios Espirituais", até hoje em dia muito usado. Vivia de esmolas, mas não aceitava nem carne nem vinho. Só aceitava um pouco de vinho, se me dessem, no domingo.

16. Foi um tempo de muito aprendizado. Tive períodos difíceis com ansiedades e escrúpulos. Não conseguia encontrar ajuda em vários confessores. Rezei com mais intensidade. Tive tentações e muito desânimo. Cheguei a pensar em me atirar num buraco. Fiz um longo jejum durante uma semana, sem comer nem beber. Mas Padre que me confessava mandou que eu parasse com isto. Obedeci e achei-me desanuviado. Tudo me valeu, graças a Deus, como experiência para ajudar depois os outros.

17. Uma vez, eu ia, por devoção a uma igreja, mais ou menos a dois quilômetros de Manresa, a uma igreja que, penso, se chamava São Paulo. O caminho seguia o barranco do rio Cardoner. Sentei-me um pouco, rezando, e olhava o rio, correndo lá em baixo. Começaram a abrir-se os olhos de meu entendimento. Não tinha visão nenhuma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito como de fé e letras. Tudo me parecia novo. Só posso dizer que recebi uma intensa claridade no meu entendimento. Em todo o tempo de minha vida, não me pareceu ter atingido tanto quanto daquela única vez.

18. Estive muito doente no inverno. Uma família, os Ferrera, deu-me abrigo e cuidou-me. Sarei, mas me ficou um fraqueza e dor de estômago. Foi então que aceitei, de presente, alguma roupa mais quente e um boné. Foi, nesta época, que me pus de novo a caminho, sozinho e a pé , pedindo esmola.

De esmola fui recebido num navio de peregrinos. Deram-me algum dinheiro. Eu o deixei para os pedintes da praça. Apenas levei comida, os biscoitos, ração dos marinheiros daquele tempo, porque o capitão só me aceitou com esta condição. O veleiro enfrentou uma grande tempestade na travessia para o porto de Gaeta na Itália. Em terra, tivemos que temer a peste. Numa hospedaria, fui obrigado a defender mãe e filha, que estavam sendo vítimas de uns malfeitores que queriam abusar delas. Já em Roma, tomei a bênção do Papa, Adriano VI.

Continuei para Veneza, esperando encontrar passagem para a Terra Santa. No caminho, dei de esmola uma quantia que tinha aceito para pagar a passagem para a Terra Santa. Passei por Pádua e cheguei a Veneza, onde me mantive mendigando na praça. Foi lá que um rico espanhol, que me conhecia, me encontrou. Ele me convidou à sua casa e mesa, e conseguiu passagem num navio que seguia para Chipre.

Eu estava com febre e fraco, mas embarquei assim mesmo. Vomitei muito, mas parece que isto me fez bem. Mas notei que havia muitas práticas indecentes a bordo. Não deixei de repreender os que procediam mal. Chegaram a pensar em me largar numa ilha qualquer.

19. Afinal, desembarcamos em Chipre, onde fomos, por terra, ao porto de Salinas, de onde conseguimos uma embarcação para Jafa, na Palestina. Montados em jumentos, chegamos a Jerusalém. Há uns cinco quilômetros antes da cidade, fizemos silêncio e prosseguimos rezando. Num ponto de onde podíamos avistar a cidade, uns frades franciscanos, com uma cruz, vieram receber-nos e guiar-nos.

Vocês sabem que o franciscanos, cuidam dos peregrinos e dos lugares santos, até hoje, desde um acordo que o próprio São Francisco celebrou com o sultão do Cairo no século XII. O Deus faz é para durar...

20. Queria permanecer vivendo em Jerusalém, visitando sempre aqueles lugares santos e ajudando às almas, como se dizia no meu tempo. Mas não me foi permitido. Ainda tentei uma última visita extraordinária ao monte da Ascensão de Nosso Senhor. Um empregado do convento franciscano foi me buscar e me trouxe segurando com força pelo braço. Recebi do Senhor grande consolação. Parecia-me que Cristo vinha sempre comigo, seus pés acima de mim. Foi desta vez que percebi que não era necessário, para seguir de perto a Cristo, morar nos lugares onde ele tinha vivido, nem copiar seu modo de vida. Ele está na companhia de cada cristão que procura viver a vontade do Pai.

E qual é a vontade do Pai? Cada vez mais, procurar e achar a vontade dele na vida passou a ser o que realmente importava.

21. Já que não podia ficar na Terra Santa, voltei por Chipre a Veneza, de Veneza passei por Ferrara. Havia guerra e fui preso. Suspeitavam que eu fosse um espião. Despiram-me e me examinaram minuciosamente. Mas me tomaram por um idiota, pois não falei nada e não procurei me justificar, deixando tudo nas mãos de Deus. Acabaram me soltando.

Logo pude chegar a Gênova. Ali, encontrei um conterrâneo, que me arranjou lugar num navio para Barcelona. Novamente corremos risco, pois o almirante Andrea Dória estava patrulhando aquelas águas e capturava navios para os franceses. Vocês compreendem porque foi crescendo em mim a contemplação dos milagres de Jesus no mar: ora caminhando sobre as águas agitadas, ora acalmando a tempestade. Não há situação perigosa que impeça ele de vir até nós. Nem a morte pode nos separar dele...

22. Em Barcelona, comecei a estudar, porque queria ter mais conhecimento para ajudar os outros. Mas tinha de começar de baixo. Só sabia ler e escrever em castelhano. Naquele tempo a língua da cultura e da ciência em toda a Europa era o latim. Teve ente boa que me amparou: um bom professor me dava aulas gratuitas, e uma boa senhora, o de comer. Mas não foi fácil ser colega de uma garotada, que aprendia mais rapidamente. Tive de superá-los com aplicação.

Naquela época, comecei a ter novas idéias e novos gostos, que pareciam ser muito espirituais, mas que me distraíam nos estudos. Percebi que estavam me desviando dos meus deveres, do bem que eu tinha fazer. Passei a evitar estas idéias, imaginações e gostos para levar adiante meu curso básico, que durou dois anos. Estava preparado para a universidade. Escolhi a de Alcalá, perto de Madri, a capital da Espanha.

23. Em Alcalá, voltei a mendigar para viver. Alguns caçoavam de mim. O encarregado do hospital - que hoje nós chamaríamos de albergue - teve pena e me arranjou um quarto com todo o necessário. Deus tudo vê tudo provê! A gente vai vivendo como se tudo dependesse de nós, mas confiando como se tudo dependesse de Deus. Dá certo! Funciona mesmo! Estudei ali ano e meio. Fiz bons amigos, que me ajudavam a arranjar esmolas para os pobres. Comecei a ajudar várias pessoas, dando-lhes os Exercícios Espirituais. Na verdade, não conheço nenhum meio melhor para ajudar o próximo!

24. Formamos um grupo amigo de estudantes. Tudo isto atraiu atenção. Houve rumores de que éramos "iluminados", fanatizados, gente estranha e perigosa, "hereges". Fomos investigados. Depois, chamados. Disseram que não nos tinham encontrado culpados em nada, mas nos fizeram várias imposições, inclusive sobre as cores de nossas roupas. Perguntamos se tinham descoberto alguma heresia. Responderam: "Não. Se tivéssemos encontrado, vocês teriam sido queimados".

Mesmo assim, fui preso, uns meses depois, por dezessete dias, até que se encontraram duas mulheres, mãe e filha, que, por conta própria, tinham saído para uma romaria, sem avisar ninguém. Pensavam que eu as tinha aconselhado mal... Estava difícil estudar neste clima. A conselho do Arcebispo de Valladolid, resolvi, com meus colegas, irmos para a Universidade de Salamanca.

Lá toda a incompreensão recomeçou. Fui preso com um colega, acorrentado no convento dos dominicanos. Depois de absolvido, proibiram-me dar os Exercícios, embora não achassem nada de errado no livrinho. Não devia falar de assuntos de fé, antes de que acabássemos os cursos. Optei por ir estudar em Paris. Eu continuava decidido a estudar para melhor ajudar os outros. Apesar da guerra, fui, sozinho, carregando com alguns livros, num jumento.

25. Sozinho e a pé cheguei a Paris. Era o mês de fevereiro. O ano? Duvido se foi no ano de 1528 ou 27. Se foi em 27, foi no ano em que nasceu o futuro rei Filipe II, que haveria de anexar Portugal e suas colônias, a seu reino. Foi, por muito tempo o monarca mais poderoso da Europa e de boa parte do mundo. Mas tudo isto passou. Como já lhes disso, o que só humano se vai. O que é inspirado por Deus permanece e vai durando, apesar dos pesares, contra tudo e contra todos.

26. Novamente com a garotada retomei os estudos, com o método e a ordem de Paris. Mais tarde, escolhi esta pedagogia para as escolas e Universidades da Companhia de Jesus. Tudo isto iria ser muito conhecido como "a ratio studiorum" dos jesuítas.

Hoje chamam de pedagogia inaciana e é aplicada cada vez mais em muitos lugares. Na verdade, escolhi este processo porque experimentei sua validade e percebi que concordava com minhas intuições nos Exercícios. De fato, não é o muito saber que ajuda, mas o sentir e saborear interiormente as coisas. Para isto, a explicação deve ser breve, lançando o aluno na prática, nos exercícios. Ele, exercitando-se com seus colegas e experimentando, o melhor possível, é quem aprende. A sala de aula não é para ouvir explanações, mas para exercitar-se também. Tudo com ordem e método.

Ah! Nos estudos, como na oração, é sempre necessário repetir o que se descobriu, insistir no que ficou pouco entendido, não desistir no tempo difícil, acreditando que o ânimo e a esperança vão retornar.

Uma outra coisa que aprendi e passo adiante: exercício, também o espiritual, sem correção não tem valor.

27. Graças a Deus, que parecia até meu bom professor particular, fui avançando. Na verdade, eu caminhava dia a dia, passo a passo, de claridade em claridade, como diz um São Paulo (2Cor 3,18). Queria ajudar os outros. Estudava para isto. Cheguei a formar-me e ganhar o título de Mestre. Mas não tinha planos. Confiava e esperava.

Aos poucos, Deus me deu reunir um grupo de amigos. Amigos de verdade, amigos no Senhor, como gosto de dizer. Companheiros mesmo! Eles e eu nos lembramos disso quando decidimos a ficar unidos e formamos a Companhia de Jesus. Quisemos sempre ser companheiros de Jesus. Nós nos chamávamos "companheiros"! Mais tarde, ficamos sendo conhecidos como "os jesuítas".

Nas férias ia a Flandres, hoje Bélgica, para conseguir meios que me permitissem estudar. Fiz bons amigos e até pude ajudar outros estudantes pobres como eu. Estudei no Colégio dos portugueses, fundado por D. João III. Foi o reitor, Diogo de Gouveia, que iria falar de mim e dos companheiros ao rei, provocando um convite para passarmos às Índias. Eu nem podia imaginar, mas estava começando uma nova e surpreendente etapa do caminho do peregrino. E peregrino eu fui e me senti a maior e melhor parte da minha vida.

28. A saúde se ressentiu um tanto. Os médicos me recomendaram um tempo nos "ares pátrios". Montado num cavalinho, comprado pelos companheiros, peguei, de novo, a estrada. Não quis me hospedar no castelo. Fiquei no hospital. Mendigava. Pregava a doutrina cristã às crianças. Quando, por graça de Deus, fundamos a Companhia, fiz todos os jesuítas prometerem que dariam sempre catecismo às crianças e ao povo simples. Eles tem sido fiéis a este compromisso. Mesmo os doutores, mesmo os maiores deles, como o Cardeal Bellarmino e Pedro Canísio, hoje santos canonizados. Pregava nos domingos e festas. Vinha gente dos arredores para ouvir. Consegui suprimir alguns abusos, mesmo coisas erradas no comportamento do meu irmão. Pudemos organizar a ajuda aos pobres. Foi um tempo de missão.

29. Aproveitei para visitar, viajando a pé, às famílias de alguns dos companheiros e amigos no Senhor. Por fim, embarquei em Valência. Foi uma viagem arriscada, primeiro porque o pirata Barbarroxa estava tornando muito insegura a travessia da Espanha para Gênova; segundo, pela época do ano. De fato, sofremos outra grande tempestade, onde estivemos perto de afundar.

Novamente a pé, dirigi-me para Bolonha. Errei o caminho na montanha. O atalho foi apertando, apertando, até sumir... Passei a noite de quatro, sem poder avançar nem voltar atrás, ouvindo um rio encachoeirado lá em baixo. Nunca senti tanto medo na minha vida! Mas Deus ajudou e cheguei a Bolonha, não sem antes escorregar numa pinguela e tomar um inesperado banho, para alegria da molecada...

De Bolonha, alcancei Veneza. Ali tínhamos marcado encontro, eu os companheiros de Paris. Queríamos peregrinar à Terra Santa. Tínhamos mesmo feito voto de fazer esta peregrinação, numa capelinha de Montmartre, naquele tempo nos arredores de Paris. Ela existe até hoje e muita gente amiga, sobretudo jesuítas, gostam de ir visitá-la e lembrar aqueles universitários que sonhavam com as lutas e os trabalhos do Reino de Deus.

28. Éramos nove os companheiros, amigos no Senhor, peregrinos pobres. O primeiro de todos foi Pedro Fabro, o primeiro a fazer o Exercícios, o primeiro a ordenar-se, doutor, muito sábio em humildade. Já foi declarado bem-aventurado pela Igreja. Grande amigo! Andou boa parte da Europa a pé, e passou, como Jesus, fazendo o bem.

Francisco Xavier veio a ficar famoso como o evangelizador das Índias, como se chamavam as partes do Oriente, cujo caminho marítimos os portugueses tinham, afinal, descoberto. Francisco era animado e corajoso. Chegou a por o pé e abrir espaço para outros missionários nas ilhas mais distantes da atual Indonésia, estabelecendo postos avançados para a fé.

No seu trabalho, enfrentou autoridades corruptas, marajás prepotentes e situações estranhas e perigosas, como o tempo que passou entre os envenenadores da ilha de Moro, ou nas navegações em embarcações precárias, às vezes simples jangadas ou catamarãs. Foi o primeiro ocidental a entrar no Japão. Apreciava muito a cultura japonesa e plantou uma cristandade que resistiu até à bomba atômica... Mas isto é outra longa história...

Francisco morreu insistindo em entrar na China, cujo Imperador não admitia estrangeiros e mantinha as fronteiras fechadas e muito bem guardadas. Seus mandarins tinham apertadas ordens de comunicar qualquer estranho que penetrasse no Celeste Império, e este devia ser imediatamente capturado e eliminado. Ele morreu, doente, com muita febre, numa ilha diante das praias da China. Hoje, é o santo padroeiro das missões católicas junto com Santa Teresinha do Menino Jesus...

29. Tenho todos os outros bem no coração: o Diogo Laínez, bom teólogo, serviu no Concílio de Trento, com o Afonso Salmerón, ambos espanhóis, como também o Nicolau Bobadilha. Já o Simão Rodriguez era português, e fundou a primeira Província da nossa Companhia justamente a de Portugal. O seu célebre Colégio de Coimbra forneceu missionários para o Oriente, a África e a América.

A estes primeiros amigos, o Senhor juntou Cláudio Jaio, João Coduri e Pascásio Broet, todos três franceses. Como amigos e companheiros no Senhor Jesus, sonhávamos em imitá-lo na vida segundo o Evangelho, até mesmo a morte pela salvação do mundo inteiro. Nosso sonho e decisão era peregrinarmos a Jerusalém. Se não fosse possível, pois havia guerra no Mediterrâneo entre Veneza e os turcos, então iríamos a Roma, colocar-nos à disposição do Papa, para sermos enviados aos trabalhos mais necessários.

Todos éramos formados na Universidade de Paris, a maioria doutores. Eu só tomei o grau de Mestre. O primeiro a ser ordenado foi o Pedro Fabro. Foi ele quem celebrou Missa em Monmartre quando fizemos nosso voto de peregrinos à Terra Santa.

30. Em Veneza, vivemos de esmolas, servindo aos pobres nos hospitais. Passamos muita dificuldade, e mesmo houve uma perseguição. Fomos até processados como hereges, mas absolvidos. Mas não foi possível embarcar, por causa de nova guerra com os turcos. Foi por isso que seguimos para Roma a fim de nos apresentarmos ao Papa para servir à Igreja onde ele achasse melhor.

Pouco antes de entrar na cidade, numa igrejinha, chamada La Storta, eu estava fazendo oração, e senti tal mudança interior, vendo claramente que Deus Pai me colocava com Cristo, seu Filho. Não tive ânimo de duvidar disto. Parecia-me que Deus Pai me imprimia do coração estas palavras: "Em Roma, serei propício a vocês". Fiquei pensando que seríamos martirizados em Roma...

31. Resumindo: tivemos muita dificuldades em Roma. Mas tudo foi se resolvendo com oração, ação e paciência. Vendo que uns iam ser enviados para várias partes da Itália, Europa e até para o Oriente, decidimos, para manter nossa união e companheirismo, fazer voto de obediência a um, que seria o Prepósito Geral, mais conhecido como Padre Geral. O Papa aprovou nossa forma de vida, nosso "instituto", como dizíamos. Apesar de minha hesitação, os outros todos votaram em mim, e tive de assumir o governo da "Companhia de Jesus" que nascia pela graça de Deus e para a sua maior glória.

Sentíamos que o mesmo Jesus que tinha chamado os doze para estarem com eles e enviá-los, também nos chamava e enviava sob a bandeira da Cruz. Queríamos ajudar as pessoas, em primeiro lugar dando a elas os Exercícios Espirituais e por qualquer boa obra que estivesse a nosso alcance.

Para melhor acertarmos onde ir, fizemos voto de obedecer ao seu Vigário, o Papa, de obedecê-lo em tudo a respeito das missões. E para estarmos disponíveis para estas missões queríamos que todos os que quisessem viver como companheiros deviam ter uma preparação cuidadosa e longa, tanto nos estudos como em experiências de vida, dando provas de aproveitamento na virtude.

32. Fiquei em Roma. Com meu secretário, Polanco, escrevi mais de 6OOO cartas, pois Deus nos abençoava com novos e novos companheiros. Pude mandar os nossos para o Brasil, reforçar nossa presença no Oriente, com Xavier na liderança, enviar gente à África, ajudar à reforma católica na Alemanha, França, Polônia, além da Itália, Espanha e Portugal... Muitos morreram mártires, ainda naqueles anos, como os que foram à Etiópia.

No começo, eu não queria que os companheiros assumissem cátedras nas Universidades e escolas, porque me parecia que perderíamos a mobilidade. Eu imaginava a vida apostólica como anunciar o Evangelho na pobreza, indo de lugar em lugar, entre fiéis e não fiéis, como Jesus e seus companheiros, os apóstolos. Mas a necessidade de servir e a obediência muito cedo nos levaram a assumir o trabalho da educação.

Escolas de primeiras letras, colégios e até universidades brotaram em toda parte. O primeiro colégio foi na Sicília. Xavier criou logo um, em Goa, na Índia, para instrução dos naturais do país. Simão Rodrigues fundou o Colégio de Coimbra em Portugal, um seminário para os jesuítas em formação... Muitos jovens como o santo José de Anchieta, Apóstolo do Brasil. Outros não tão jovens, como Manoel da Nóbrega, que já era padre e bom pregador quando Deus o chamou à nossa pequena Companhia. Foi ele que julgamos mais preparado para chefiar o primeiro grupo de missionários que enviamos à América, ao novo mundo, precisamente ao Brasil.

Um dos seus trabalhos mais bonitos foi começarem numa cabana o Colégio São Paulo, onde ensinavam tupi, português e latim para os curumins, além de artes e ofícios... Anchieta, tão jovem, com menos de vinte anos, foi quem pôs por escrito a língua tupi... Fez dicionário, gramática, catecismo... Escreveu poesia, teatro... Como vocês sabem este Colégio foi o núcleo da imensa cidade de São Paulo... Achei muito de acordo com nosso modo de proceder que Anchieta tenha tido a iniciativa de aprender com os pajés a respeito de suas ervas e frutos curativos. Muito bem se fez com as receitas que ele anotou. Depois tivemos uma bela farmácia em Salvador, que se tornou a primeira Escola de Medicina da Bahia.

33. Em Roma terminei minha peregrinação nesta vida. Vim para a Casa do meu Pai e Pai nosso, estar com Cristo, sua Mãe, os Anjos e todos os bem aventurados no dia 31 de julho de 1556. Foi muito emocionante ouvir o Pai dizer-me: "Entra na alegria do teu Senhor!" Estou feliz como nem posso dizer. Ocupo-me em ajudar meus companheiros pelo mundo afora a ajudar... Ajudar a ajudar!

Meus companheiros também percorrem o Caminho do Peregrino, graças a Deus! Recentemente, obedecendo ao apelo do Papa, voltaram à Albânia, um país onde tinham matado todos os padres, religiosas, religiosas e muitíssimos leigos. O Papa nos enviou também à Sibéria, para ajudar a fundar a primeira diocese nestas partes do mundo tão frias e geladas. Os jesuítas continuam trabalhando pelo Evangelho do Reino de Deus. Gosto do serviço que o Pe. Pedro Arrupe fundou em favor dos refugiados das guerras e calamidades, muitos vivendo em campos de concentração há muitos anos.

Muitos têm dado a vida por Cristo e pelos seus irmãos. A lista é grande, mas, no Brasil, por exemplo, o Pe. João Bosco Burnier, o Ir. Vicente Cañas... Tudo para a maior glória de Deus. É isto mesmo o que queremos: em tudo amar e servir à Divina Majestade. Afinal o amor se mostra mais em obras do que em palavras.